Biografia

Os clássicos são atemporais, dizem. Ao expressar, com perfeição estética, os dilemas, as angústias e os desejos da condição humana em determinado contexto temporal, as obras ditas clássicas se caracterizam justamente pela autonomia que conquistaram diante daquele mesmo contexto. Indo muito além dele, os clássicos, precisamente por serem clássicos, possuem o seu próprio tempo. Frutos de uma época específica, eles ganham a eternidade. É como se certas criaturas particulares, produtos da genialidade particular de seus criadores, conseguissem sobreviver aos tempos particulares nos quais foram criadas, e passassem a ter todo o tempo do mundo.

Não há muitas dúvidas em se afirmar que os álbuns Dois e Que país é este – lançados, respectivamente, em julho de 1986 e novembro de 1987 – são clássicos do rock brasileiro, e que, a partir deles, a Legião Urbana, mesmo ainda tão jovem, já se tornava uma banda clássica e, portanto, atemporal. Mais de trinta anos depois de terem sido apresentadas ao público, as canções desses dois discos seguem cativando corações e mentes de todas as idades, cores e classes sociais nesse país desigual e continental que é o Brasil. De norte a sul do território nacional, das friorentas rodas de vinho (ruim) e violão nas universidades de Porto Alegre aos animados caraoquês eletrônicos do semiárido nordestino, os acordes dissonantes de “Tempo Perdido” e a épica (e quilométrica) letra de “Faroeste Caboclo” são presenças quase obrigatórias – e o mesmo se poderia dizer dos versos de “Quase sem querer”, “Índios”, “Que país é este” e “Eu sei”, entre outras músicas do segundo e terceiro disco da banda, então composta por Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Rocha, o Negrete (que deixaria a banda no início de 1989, nos momentos iniciais das gravações do quarto disco, As Quatro Estações).

Desde quando foram lançados aqueles dois discos, muita coisa se passou e, claro, muita coisa mudou. Porém, nas mudanças históricas há sempre coisas que permanecem, e quando se trata de clássicos, atemporais por excelência, as permanências se tornam evidentes. Em 2015, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá decidiram convidar alguns músicos seletos e realizar uma turnê comemorativa das três décadas de lançamento do primeiro álbum da banda, executado na íntegra para o delírio de milhares de legionários de diferentes gerações e regiões do país. Para alguns, já não tão novos, foi a oportunidade de ver, ao menos mais uma vez, canções que marcaram suas vidas tocadas por seus autores, Dado e Bonfá. Para outros, mais novos, foi a chance de ver pela primeira vez a dupla tocando ao vivo músicas que só eram curtidas por meio das antigas e novas mídias digitais. Todos, no entanto, se mostraram igualmente jovens. Mutuamente, ídolos e fãs trocaram energias e protagonizaram catarses que só o autêntico rock possibilita. O amor, o afeto, a rebeldia e a angústia de canções compostas havia trinta anos reapareceram instantaneamente, como se tivessem propositalmente hibernado apenas para ressurgir quando chegasse a hora certa, quando fosse, novamente, a vez dos filhos (e netos) da revolução. Para Dado e Bonfá, foi uma oportunidade de olhar o próprio passado não com saudosismo, e sim procurando interpretá-lo, ressignificá-lo, atualizá-lo. Homens feitos, reviveram, com outra cabeça e o mesmo coração, seus tempos de juventude transgressora. Para os ex-integrantes da Legião, o projeto comemorativo (Legião Urbana XXX anos) deu tão certo que simplesmente não existem razões para encerrá-lo agora – e quem irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?

Neste segundo semestre de 2018, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá voltarão aos palcos para, dessa vez, comemorar os aproximadamente trinta anos dos clássicos Dois e Que país é este (1978-1987), finalizando, assim, os festejos referentes àquela trilogia da então juvenil Legião. Maduros, musicalmente realizados e dotados de uma vitalidade inesgotável, poderão relembrar seus tempos de quando moravam em Brasília, sem carro, gasolina e nada de interessante para fazer – a não ser rock. Acompanhados dos mesmos músicos da última turnê (André Frateschi, Lucas Vasconcellos, Mauro Berman e Roberto Pollo), Dado e Bonfá, desde os primeiros acordes e viradas, certamente reviverão com os legionários lembranças e estórias de um passado intenso e contraditório, cujo alguns aspectos, entretanto, insistem em não passar. O Brasil de hoje, assolado por uma onda conservadora que intensifica preconceitos, opressões e desigualdades, é um país de grandes cidades cada vez mais violentas, onde o sangue anda solto e somos atacados por sermos inocentes. Nesse país arcaico e moderno, de favelas e smartphones, de medos reais e amigos virtuais, muitas vezes só queremos alguém com quem conversar para aplacar momentaneamente nossa angústia. Assim, nesse atual cenário do Brasil, Dois e Que país é este mostram porque sobreviveram aos seus anos de criação, e exibem toda a sua atualidade, no melhor estilo dos clássicos. Diante de uma certa apatia política, conformismo social, solidão subjetiva e padronização cultural, talvez o rock dos ex-meninos da Legião possa não só servir de alento aos mais vividos, como também revolucionariamente inspirar uma juventude em cujas mãos reside a esperança de que nossas vidas, e a do país, não sejam, para sempre, mais do mesmo. Será que ainda hoje não é justamente o som de Dado e Bonfá que o Brasil quer e precisa ouvir?

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